A cada dez minutos, uma denúncia é registrada no Disque 100 por violência contra pessoas LGBTQIAPN+, idosos, mulheres e crianças e adolescentes em Minas Gerais. No primeiro semestre de 2023, o canal de denúncias anônimas de casos de violações de direitos humanos registrou alta de 42% nas queixas no Estado, quando comparado ao mesmo período do ano passado, conforme dados do Ministério dos Direitos Humanos e da Cidadania. Para especialistas, a disparada das notificações é reflexo da escalada de atos violentos na sociedade, mas também de um maior número de denúncias. No entanto, o medo enraizado em quem sofre na pele as agressões ainda reflete em uma subnotificação da violência.
Entre janeiro e junho de 2023, o Disque 100 registrou em Minas 24.509 denúncias de crimes cometidos contra esses grupos, em comparação com 17.172 anotados no primeiro semestre de 2022. Em todo o ano passado, foram feitas 35.685 denúncias de atos violentos contra vítimas desses perfis no Estado. Entre os principais relatos, estão casos de agressões físicas e psicológicas – que acontecem por meio de palavras, gestos e olhares, sem necessariamente ocorrer o contato físico. O canal recebe denúncias de violações de direitos de grupos vulneráveis 24 horas por dia, em situações que acabaram de acontecer ou que estão em curso. Os relatos são encaminhados para apuração nos órgãos competentes.
No entanto, apesar de ser possível denunciar a violência por meio de uma simples ligação, o medo e a vergonha ainda são fatores que precisam ser superados por quem é alvo de agressões. Vítima de violência, a faxineira Bárbara Vitória, de 62 anos, conta que precisou de coragem para buscar apoio no Disque 100. “Usei o número e foi muito importante, porque encontrei acolhimento. Mas o acesso deveria ser melhorado, porque é muito difícil para a gente falar. Dependendo da violência que sofremos, temos vergonha e medo de contar. Além disso, demorou para ter um retorno. Não soube o que aconteceu após a denúncia e acabei procurando por conta própria para entender qual foi o prosseguimento da minha denúncia”, conta.
O temor relatado por Bárbara é comum entre as vítimas de violência. Integrante da comunidade LGBTQIAPN+, o aposentado Francisco Adalton Aleixo da Mota, de 72 anos, trabalha com pessoas que foram alvo de agressões, prestando acolhimento e orientação sobre a necessidade de denunciar os casos. Para ele, o aumento dos casos notificados no Disque 100 ocorre devido ao maior incentivo às denúncias nos últimos tempos. “Hoje as pessoas estão tendo mais coragem de fazer denúncias, há mais divulgação e campanhas. Os casos sempre existiram em números iguais, mas agora a lei está dando uma visão mais ampla. Temos a quem fazer as denúncias, então os números aparecem. Acompanho diversos grupos e vejo que as pessoas estão tomando coragem de denunciar. Às vezes as pessoas estão perdidas e sem onde recorrer. É preciso uma orientação e apoio constante”, afirma.
Opinião semelhante tem Rodrigo Caetano Arantes, especialista em gerontologia e ex-presidente do Conselho Estadual dos Direitos da Pessoa Idosa de Minas Gerais (CEDIPI/MG). “O aumento das denúncias, contra pessoas idosas, por exemplo, se dá pelo acesso mais facilitado aos canais de denúncia, podendo ser explicado pelo maior acesso a telefones celulares e internet, além de mais informações sobre os tipos de violências e sobre como denunciá-los”, aponta.
Ele ressalta, no entanto, que muitas denúncias deixam de ser feitas devido ao fato de o agressor ser alguém da própria família. “Na grande maioria das vezes, quem pratica a violência está no seio familiar, fator que pode ser impeditivo também para se denunciar. As pessoas, em geral, tendem a acobertar casos de violência para não terem animosidades com quem os pratica. O que é um erro, pois não podemos ser coniventes com casos de maus-tratos e violência contra pessoas idosas ou outras (vulneráveis), caso saibamos ou presenciemos os fatos. É importante frisar que essas denúncias podem ser feitas de modo a proteger quem denuncia, de forma anônima”, reforça.
Aumento da violência
Para a coordenadora do Núcleo de Estudos e Pesquisas sobre a Mulher (Nepem), Marlise Matos, o aumento das denúncias também é reflexo do crescimento da violência doméstica, alavancada pelo isolamento social imposto pela pandemia da Covid-19. Ela ressalta que dados do 17º Anuário Brasileiro de Segurança Pública, divulgado em julho deste ano, mostram que Minas é o quarto Estado com menor número de mortes violentas, com taxa de mortalidade de 12,9% por 100 mil habitantes. Ao todo, 2.588 pessoas perderam a vida no Estado com o emprego de violência no ano passado. Já no ranking de homicídios de mulheres, o Estado é o segundo em que mais se comete feminicídios no país. Em 2022, 171 mulheres foram mortas pelo simples fato de serem mulheres – o aumento é de 9,9% em relação a 2021, quando 155 mulheres foram assassinadas.
“O Brasil é um dos países mais violentos do mundo. Todos os indicadores que você possa imaginar, desde trânsito aos crimes contra a vida e contra o patrimônio. Não é surpreendente (o aumento), estamos reverberando dois contextos. O primeiro deles é a pandemia, que oportunizou o isolamento social; então, quando se fala de criança e adolescente, idosos e mulheres, por exemplo, a gente entende que uma parte da população ficou isolada e teve contato frequente com agressores, que muitas vezes são parentes. Outro ingrediente foi um governo político que estimulava o armamentismo, por exemplo”, avalia.
Apesar do aumento, especialistas são unânimes ao descrever que ainda há uma subnotificação dos casos. O cientista político da Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG) Thiago Coacci avalia que o problema ocorre pois o Disque 100 ainda é pouco divulgado. “Há uma subnotificação porque o canal é pouco conhecido, pouquíssimas pessoas sabem sobre o meio. Há um desconhecimento grande”, afirma.
Ele ressalta ainda que um senso popular sobre a “impunidade” dos agressores faz com que muitos desistam de denunciar. Apesar disso, ele pontua a importância do canal para produção de dados que possam ajudar em respostas contra a violência. “Existem várias razões; até se chegar às denúncias tem uma série de filtros, como o medo. Mas há ainda a dúvida da efetividade desses mecanismos, pois existe na nossa cultura essa sensação de impunidade que desestimula muitas vezes as denúncias. Mas é importante reforçar que a central pública é essencial para a produção de dados, por mais precário que seja, isso já gera um tipo de registro”, avalia.
‘Termômetro’
‘Termômetro’ social da violência, o Disque 100 também se tornou um canal para dar voz aos grupos minorizados, ressalta Marlise Matos. “Grupos como de pessoas LGBTQIAPN+, idosos, mulheres e crianças e adolescentes vivem sem o direito à cidadania, eles não podem viver uma vida sem violência. São grupos que estão em luta por cidadania, luta por ampliação democrática e luta por uma vida plena. Querem viver sem violência. Esses são os grupos que estão na fronteira, lutando pela inclusão. O Disque 100 é um termômetro que é essencial para medir a febre”, explica.
A coordenadora do Nepem ressalta, portanto, a necessidade de maior investimento na Justiça para transformar as denúncias em processos que resultem na punição dos agressores. “Todas as denúncias e os protocolos com as suas informações são diretamente encaminhadas aos ministérios públicos estaduais e, em caso de crimes federais, ao Ministério Público Federal. Mas temos uma Justiça sobrecarregada. Então não é incomum que as pessoas que fazem a denúncia não tenham nenhum retorno. Precisamos de políticas públicas efetivas para frear essa escalada de violência, e para isso servem os canais de denúncia, para acender um alerta”, cobra.
Em nota, o Ministério dos Direitos Humanos e da Cidadania disse que “não é possível afirmar no momento” se há uma subnotificação dos casos. Segundo o órgão, a Ouvidoria Nacional de Direitos Humanos é responsável por, entre outras atribuições, receber, examinar e encaminhar denúncias e reclamações sobre violações de direitos humanos. As denúncias são encaminhadas para cerca de 55 mil (cinquenta e cinco mil) destinos, incluindo tanto órgãos assistenciais como de persecução penal, dentre eles: conselhos tutelares, Cras, Creas, delegacias de polícia, Ministério Público, entre outros.
Já o governo de Minas disse que tem desenvolvido e estimulado políticas de combate à violência contra a mulher, em busca de prestar auxílio necessário às vítimas, atuar na prevenção de casos enquadrados na Lei Maria da Penha e, sobretudo, combater as ocorrências de feminicídio. Afirmou ainda que há a Patrulha de Prevenção à Violência Doméstica, que é composta por um conjunto de procedimentos a serem executados após a identificação, pela triagem, das ocorrências registradas dos casos reincidentes e de maior gravidade de violência doméstica.
Ainda conforme o governo de Minas, em relação à proteção da população LGBTQIAPN+ foi lançado um painel de crimes com causa presumida LGBTQIA+fobia. O canal busca trazer transparência às informações sobre as violências sofridas pela população, além de subsidiar a comissão na formulação de políticas públicas e na tomada de decisões.
Sobre a proteção de crianças e adolescentes, o Executivo afirmou que realiza várias operações integradas ao longo de todo o ano. Em uma das ações, as forças de segurança atuaram no combate à exploração sexual de crianças e adolescentes. A operação contou com mais de 2.000 profissionais, 1.500 pontos fiscalizados e mais de 52 pessoas presas.
Saiba como denunciar:
Qualquer violação de direitos humanos poderá ser denunciada pelo Disque 100. Qualquer pessoa pode reportar alguma notícia de fato relacionada a violações de direitos humanos da qual seja vítima ou tenha conhecimento. O serviço funciona diariamente, 24 horas por dia, incluindo sábados, domingos e feriados. As ligações podem ser feitas de todo o Brasil por meio de discagem direta e gratuita, de qualquer terminal telefônico fixo ou móvel, bastando discar o número 100.
O Disque 100 recebe, analisa e encaminha denúncias de violações de direitos humanos relacionadas aos seguintes grupos e/ou temas:
Crianças e adolescentes
Pessoas idosas
Pessoas com deficiência
Pessoas em restrição de liberdade
População LGBTQIA+
População em situação de rua
Discriminação ética ou racial
Tráfico de pessoas
Trabalho análogo à escravidão
Terra e conflitos agrários
Moradia e conflitos urbanos
Violência contra ciganos, quilombolas, indígenas e outras comunidades tradicionais
Violência policial (inclusive das forças de segurança pública no âmbito da intervenção federal no Estado do Rio de Janeiro)
Violência contra comunicadores e jornalistas
Violência contra migrantes e refugiados
Pessoas com doenças raras
A denúncia é anônima?
A escolha do anonimato é facultada ao denunciante. Para denunciar, é necessário entrar em contato por meio de um dos canais e informar dados de identificação dos envolvidos e um breve relato da ocorrência.
Acompanhamento da denúncia
Após o registro, a denúncia é analisada e encaminhada aos órgãos de proteção, defesa e responsabilização em direitos humanos, respeitando as competências de cada órgão. Se o cidadão quiser acompanhar a denúncia, basta ligar para o Disque 100, fornecer o número de protocolo e confirmar os dados da denúncia.
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