DECEMBER 9, 2022


97% das mulheres de baixa renda têm medo de andar a pé na rua, mostra pesquisa

Foram entrevistadas 2.750 mulheres de Rio e São Paulo das classes C, D e E

Foto: Fred Magno/O Tempo

Imagine um grupo de cem mulheres das classes C, D e E. Apenas três delas não têm medo de andar a pé na rua. Os medos se multiplicam, mas os campeões são assalto (93% dizem temê-lo) e estupro (aí são 89%). Importunações sexuais -como uma passada de mão- e discriminação -as negras são as que mais a sentem- também apavoram grandes levas femininas.

São apontamentos de uma pesquisa feita pelo Instituto Locomotiva a pedido da 99. A sondagem contou com 2.750 entrevistadas nas capitais do Rio e de São Paulo, mais a região metropolitana paulista, entre 20 de janeiro e 8 de fevereiro. O recorte de classe contempla uma renda per capita de até R$ 2.015 por pessoa da família. A margem de erro é de dois pontos percentuais.

Não que deixar de caminhar seja uma opção para tantas dessas mulheres. Metade o faz todo dia, e 2 em cada 3 delas percorrem um trajeto que lhes causa receio ao menos cinco vezes por semana.

São percursos que podem tomar um tempo significativo da rotina. Uma em cada cinco mulheres, se somar, anda mais de uma hora por dia. As rotas são trilhadas de manhã por 85% da amostra, à tarde por 75% e de noite ou madrugada por 47%.

Foi por volta das 18h de um sábado que Lorena, 15, estudante e especialista em alongamento de unhas em gel, ouviu: “Passa o celular, perdeu”. Ela e uma amiga estavam a caminho de um sacolão perto de casa. “Eram dois homens numa moto. Chegaram falando bem baixo, só que a gente ficou assustada, né? A gente deu o celular sem nem pensar.”

O assédio também lhe dá “um pouquinho de medo”, conta a jovem. “Quando os homens mexem comigo na rua, não olho pra trás. Tipo, eu ignoro, né, pra evitar briga na rua. Porque quando você responde, eles começam a brigar. Se você achar ruim, eles ainda te tratam com ignorância.”

Marisa Munção, 54, sua avó, também mora no Parque Santo Antônio, o bairro na zona sul paulistana onde o prefeito Ricardo Nunes (MDB) adolesceu. Sempre que possível ela dispensa a vida pedestre. “Eu mesma não saio à noite. Vou e volto da igreja de carro. Me sinto insegura. Infelizmente, na rua, se eu não conhecer [o homem], todos são suspeitos.”

Não que a maioria das mulheres de baixa renda, mesmo temerosa, possa se dar ao luxo de não andar. A sondagem do Locomotiva mostra que deslocamentos a pé são a segunda modalidade mais popular de locomoção no grupo: 69% a adotam, atrás apenas do ônibus -79% dizem usar a frota municipal.

Claro que a combinação de vários modais acontece com frequência, daí as entrevistadas darem mais de uma opção para qual meio de transporte utilizam. Carros (44%) ou motos (9%) por aplicativo foram algumas das outras respostas. Só 2% citaram bicicletas.

“Enquanto as mulheres de classes mais altas têm mais opções de transporte privado e vivem em áreas com mais segurança, as de baixa renda dependem muito de transporte público e longas caminhadas”, afirma Renato Meirelles, presidente do instituto de pesquisa.

“Embora homens também possam se preocupar com a segurança, o medo de assédio sexual não é algo que vivenciem da mesma forma. A experiência delas é marcada por constante vigilância, em que o medo de ser importunada ou assaltada está sempre presente, e isso afeta a saúde mental.”

Para a urbanista Leticia Sabino, presidente do Instituto Caminhabilidade, a persistência de “papéis de gênero muito bem definidos de que as mulheres são as cuidadoras na sociedade”, responsáveis por cuidar de filhos, casa, sogros e pais, torna “a mobilidade muito mais complexa” para elas.

É como se o homem médio fizesse um deslocamento “pendular”: vai e volta do trabalho. Elas, não. Seus trajetos têm cara de polígono. “As mulheres saem de casa, levam filho para a escola, dali fazem uma compra, depois passam na farmácia, aí vão para o trabalho, do trabalho passam numa loja.”

Ao mesmo tempo em que o contingente feminino anda mais a pé, é ele “que sofre mais as consequências de ter uma cidade não caminhável”, diz Sabino. “O que se fala, dentro da sociologia urbana, é que a cidade das mulheres é menor. Apesar de andarmos mais, temos acesso a menos ruas e menos horários da cidade.” Há todo um corte-e-costura para evitar horários e itinerários que pareçam mais ameaçadores.

Para driblar a insegurança, é comum improvisar, “como pedir a companhia de alguém para não precisar andar sozinha”, afirma Meirelles. O levantamento que coordenou revela que 66% das mulheres já fizeram isso para não ter que caminhar sozinha, 63% se atrasaram para chegar a algum local por ter que mudar a rota, 61% desistiram de chegar a um destino lugar por temer a caminhada e 61% fingiram conhecer alguém para não parecerem desacompanhadas no trajeto.

A urbanista Sabino vê soluções pelo caminho. Cita como exemplo o Via Parque, em Caruaru (PE). “Era uma antiga linha férrea que cortava o município e deixava o ambiente degradado porque já não era usada”, diz. Acabou virando um parque linear, com prioridade de deslocamento a pé e de bicicleta.

“Gerou um espaço extremamente frequentado, que deu a possibilidade das pessoas frequentarem a cidade à noite, principalmente mulheres e meninas.” Sem precisar recalcular rota alguma.

(ANNA VIRGINIA BALLOUSSIER / FOLHAPRESS)

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