Quem escolheu o seu nome para você? Ele descreve bem quem você é hoje? O nome é uma parte da identidade de uma pessoa que, geralmente, não é ela mesma quem escolhe — mas que é possível, sim, ser decidida por ela. “Imagine nós, diante da nossa história de vida, do que passamos de vitória e de sofrimento, podermos escolher nosso nome. Diante da nossa vivência, dizer: meu nome é este. É um processo de grande conquista”, introduz a psicóloga e preceptora do Ambulatório de Sexualidade Humana da Faculdade de Saúde Santa Casa BH, Enylda Motta.
Nomes têm poder. Eles abrem ou fecham portas, despertam orgulho ou vergonha, descrevem bem uma pessoa ou são um obstáculo à verdadeira identidade dela. Para pessoas trans, o equilíbrio entre tudo isso é ainda mais delicado, pois nomes são também um marcador de gênero.
Por isso, no Dia Nacional da Visibilidade Trans, celebrado nesta quarta-feira (29/01), O TEMPO ouviu a história de dez pessoas de diferentes origens sobre como foi o processo de escolher como elas querem ser chamadas.
Arthur Jesus, 26, barbeiro e motoboy
“Quando fiz a transição, por volta de 2018, ainda não tinha adotado o nome ‘Jesus’, pelo qual sou mais conhecido atualmente. Queria um nome forte e marcante, gosto da simbologia que o nome carrega. Eu frequentava a Igreja Católica e minha mãe é pastora, mas, depois da transição, não consegui frequentar mais. Comecei a me sentir mal, pois gostava de ter contato com minha espiritualidade.
Foi aí que me encontrei no candomblé e me veio a ideia desse nome. Também gosto do choque de ser uma pessoa trans com esse nome tão ligado à religião. É algo que as pessoas não esperam. Acho que carregá-lo mostra que Jesus não pertence somente aos héteros e cisgêneros”.
Carla Naomi, 30, acompanhante
“Meu primeiro nome quando comecei a transacionar era Carla Natiely, o mesmo nome de uma amiga. Mas um amigo me falou: ‘você é bonita, morena, parece a modelo Naomi Campbell’. Ela é uma inspiração. Muito bonita, poderosa, negra. Carla Natiely era sutil, e Naomi foi uma mudança de muitas coisas. Mudei minha rotina, meus amigos, minha vida, tudo. Não é só uma coisinha.
Por trás do nome, tem uma mudança, uma coisa forte. Tem menina que coloca um nome quando começa a transição, depois sabe o que quer e troca. Natiely foi um começo para mim, mas Naomi foi quando vi que conseguia coisas que achava que não conseguiria antes”.
Duda Salabert, 43, deputada federal
“Quando eu fui iniciar minha transição de gênero, algumas pessoas trans próximas a mim sugeriram que eu colocasse um nome completamente diferente do de batismo. Mas eu optei por outro caminho, porque, na época, acompanhava uma trans em São Paulo chamada Luiza Coppieters. Ela narrava um episódio constrangedor em que, apesar de o nome dela ser feminino, Luiza, a identidade dela ser feminina, a imagem ser feminina e ela estar com roupas tidas como femininas, algumas pessoas ainda a chamavam de ‘senhor Luiza’ porque ela tinha uma voz muito grossa.
Então, eu optei por escolher um nome mais neutro, em vez de, por exemplo, Alessandra, principalmente para não passar por um episódio como a Luiza Coppieters passou. No momento da transição, eu dava aula nas principais escolas e pré-vestibulares de Minas do Brasil, e aí era o Dudu. Optei por Duda nesse sentido.
O mais difícil, de acordo com minha vivência, não é as pessoas falarem nosso nome. Mas, sim, usarem o pronome ‘ela’. É comum, nas frases em conversas, repetirem ‘Duda faz isso, Duda fez aquilo, Duda isso, Duda aquilo’. Repetem diversas vezes Duda e não usam o pronome ‘ela’. Entendo a dificuldade. Aos poucos, vamos conquistando o pronome também”.
Fran Ferreira, artista e produtora cultural
“Nasci e fui registrada com um nome maior do que esse. Minha família sempre me chamou pelo nome de registro, de que eu nunca gostei, e meus amigos na adolescência já me chamavam de Fran, diminutivo do outro nome. Minha família não me chama pelo meu nome, todo mundo tem mais de 60 anos e isso não vai mudar. Mas o resto do mundo me chama de Fran.
Nas gerações passadas, as pessoas ajudavam a escolher o nome, a batizar. Mas, atualmente, as pessoas já buscam o nome com que se identificam mais, com o qual sonharam acordadas. Nas gerações passadas, nos preocupávamos muito com o que os outros pensariam de nós. A geração atual não se preocupa tanto com isso, e sim com o que ela pensa de si mesma. É uma grande mudança”.
Nicollas Lírio, 23, fotógrafo
“O processo de escolha do meu nome já tinha acontecido desde a gestação da minha mãe. Ela fez pré-natal e, durante todo o acompanhamento, fui identificado como menino. Em todos os ultrassons, o médico falou para minha mãe que era menino, que era uma pessoa do ‘sexo masculino’, e aí ela se movimentou em torno disso e me deu o nome Nicollas, uma homenagem ao irmão mais velho dela, Nicolau. Aí, com oito, nove meses, já no final da gestação, o médico descobriu que, na verdade era uma pessoa com vulva, uma pessoa do ‘sexo feminino’, e isso alterou meu nome.
O que eu fiz pós transição foi voltar ao Nicollas e adicionar o Lírio, que é uma flor que representa muita coisa para mim desde a infância. Tenho uma ligação muito forte com a natureza e eu usava esse nome como um apelido. Depois, ele foi se conectando com outras coisas da minha vida. Também se conectou à minha avó, que se chama Rosalina e é conhecida como Dona Rosa. Ela é uma rosa e eu sou um lírio. Também tem o fato de o lírio ser uma flor de Oxum, uma flor que normalmente costumamos entregar aos orixás. Oxum é o orixá que me guia”.
Olivia Guimarães Vieira, 29, analista de marketing
“A história de como eu escolhi meu nome… Não tem muito a ver com o significado ou nada do tipo. Eu estava muito em dúvida, e aí me juntei às minhas melhores amigas, falei que era uma mulher trans e que não fazia a menor ideia do nome que queria. Para que eu me identificasse, não queria algo que se distanciasse tanto do meu nome morto. São grandes mudanças, então eu queria me sentir, mesmo nessa nova fase da minha vida, identificada com a minha pessoa do passado. Minhas amigas abriram uma lista dos nomes mais usados no Brasil e foram falando um por um. Até que uma delas falou que Olivia era ótimo.
Aquele nome ficou na minha cabeça. Primeiro, porque ele é próximo do meu nome morto, que também começa com ‘O’. De certa forma, eu senti uma ligação, um ‘clique’ na hora. Aí, perguntei para minha mãe o que ela achava, porque essa era outra questão. Nossas mães nos dão um nome quando nascemos. Então, eu queria que ela fosse parte disso. Perguntei o que ela achava de Olivia. Ela falou que não tinha pensado nesse nome, mas que, agora que eu tinha falado, não conseguia me ver de outra forma que não fosse Olivia.
Foi estranho nas primeiras vezes em que outras pessoas me chamaram pelo meu nome, porque da mesma forma que eu conseguia me identificar com ele, meu cérebro estranhava um pouco. Meu coração entendia que aquele era meu nome, mas meu cérebro, não. Nas primeiras vezes em que me chamaram, tive que ativar o pensamento de que Olivia sou eu. Com o tempo, foi ficando mais automático”.
Lorena Maria, 61, ativista e empresária
“É um batizado para nós. Fiz a transição dos 11 para os 12 anos. Eu morava no interior de João Pinheiro e, na minha cidade, não tinha travestis, mulheres trans. Mas ela é vizinha de Patos de Minas, onde meus parentes moram. Conheci uma trans mais velha lá, quando eu já estava tomando hormônios porque uma travesti me deu a receita. Conheci as meninas e temos uma coisa de madrinha, então elas me deram esse nome. Quando fiz a retificação, também tirei meu segundo nome e coloquei Maria, em homenagem à minha mãe, Maria Luiza de Paiva.
Não tive dificuldade na minha família. Ela é do interior, mas sabe aquela família muito pobre e muito unida? Uma vez, fizemos nossa reunião tradicional e meu tio, o patriarca, chamou a família toda e pediu que me chamassem de Lorena, porque eu estava me sentindo mal por algumas pessoas me chamarem por meu nome antigo. Hoje, eu sou madrinha de várias pessoas. Vamos acolhendo e orientando. É um ciclo de acolhimento”.
Zaíra Magalhães, 37, artista e jornalista
“Os meus pronomes são qualquer um. Uso pronomes masculinos, neutros e femininos. Sou uma pessoa não binária, então os pronomes não são uma questão, inicialmente. Eu sempre gostei do meu nome. Não é muito comum, nunca conheci alguém com ele. Sempre foi uma parte importante da minha identidade. Mesmo antes de eu compreender que era uma pessoa trans, ele já era simbólico. Ele era composto, tinha um segundo nome. Esse não uso mais, não faz mais sentido para mim, e acho que nunca fez.
Zaíra tem um significado interessante. É um nome árabe que fala de alguém que vai fazer visitas levando flores simbólicas, levar coisas boas a quem precisa. É um super nome artístico, e sou artista, além de jornalista. Ele nem precisa de sobrenome.
Os pronomes não são importantes para mim, por isso eu não faço questão. Ao mesmo tempo, sou uma pessoa não binária transmasculina, então é interessante que se use pronomes masculinos e neutros e se evite o feminino. Há outras pessoas que não fazem questão de pronomes, mas muitas fazem. Eu sou uma exceção. Na comunidade, coletivamente, essa é uma questão muito importante. Então, considerando isso, eu sempre convido as pessoas a fazer o exercício de usarem comigo os pronomes masculinos ou neutros, pela estranheza que causa, a princípio, de as pessoas usarem o pronome masculino com o meu nome, que termina com a letra ‘A’”.
Caê Vasconcelos, 33, jornalista
“A escolha do nome não foi um processo fácil, porque eu tinha medo de escolher algum de que depois pudesse me arrepender. Eu lembrava vagamente que, na infância, tinha alguns nomes masculinos favoritos que eu queria me chamar, mesmo sem fazer ideia de que eu era uma pessoa trans. Tentei revisitá-los, mas não fizeram mais sentido. Aí, comecei a buscar alguns nomes neutros, porque ainda estava entendendo minha identidade, se de fato me identificava como um homem trans ou com uma pessoa não-binária. Quando cheguei em Caê amei de cara, fazia muito sentido para mim. Logo comecei a usar ele como nome social, e, principalmente, jornalisticamente. Na época, eu já era jornalista, atuava como repórter e passei a assinar as matérias como Caê, mudando também as matérias antigas.
Mas a parte engraçada da história é que eu entrei em pânico quando chegou a hora de retificar uns meses depois. Tive o privilégio de ser da geração que não precisava esperar anos e ter toda uma luta na Justiça para ter direito ao nome. Era só chegar no cartório e retificar. Fiquei muito na dúvida se era esse o nome que eu queria ouvir quando fosse idoso — o que é curioso, se pensarmos que a expectativa de vida das pessoas trans no Brasil é de 35 anos. Então, o nome Caetano apareceu. Como eu não conseguia escolher entre um e outro, cheguei a abrir enquetes nas minhas redes sociais para as pessoas me ajudarem. Ficou meio a meio: metade queria Caê e a outra Caetano. No fim, fiquei com os dois. No documento, Caetano, e jornalisticamente (e como um apelido), Caê.
Ouvir minha avó dizer ‘meu neto Caê’, até hoje, é algo que me enche de amor e alegria. Ela, com seus 80 anos, ensina diariamente que o amor é a única coisa que deve prevalecer e, com ele, qualquer acolhimento é natural e potente”.
Jade de Souza Melo, 38, cantora conhecida como Jaloo
“Acho que talvez seja uma tradição entre pessoas trans ter um pouco do nome antigo. O meu era Jaime, e não é um nome de que eu me envergonhe. Vivi com ele por mais de 30 anos da minha vida, na verdade. A minha transição começou aos 33. Eu tenho esse lugar de diferença, de não ter vivido disforia de gênero [a angústia por não se identificar com o gênero com que foi designada ao nascer]. Eu realmente vivi esse momento da minha vida até o momento em que ele não me cabia mais e segui para outro momento com paz de espírito.
Nunca me senti pressionada. As coisas acabaram vindo com naturalidade, incluindo o próprio nome. Ele tem essa sonoridade parecida com o anterior e remete muito ao lugar de onde eu vim, a Amazônia, à cor verde, a essa questão de preciosidade que me instiga muito e é um nome pequeno. Gosto disso também, é um nome fácil de ser dito.
Para terminar, tem uma história muito curiosa desse nome, porque eu não me identifico como uma mulher. Isso é uma coisa que eu sempre percebi. Acho que tenho os dois gêneros comigo, mas nunca um só. Eu não quero chegar ao extremo da binaridade feminina. É a minha história, e eu gosto do jeitinho que ela é. Levando para esse lado, eu tenho um amigo de muitos anos que se chama Jade, e ele é um homem cis. Ele leva a vida há anos com esse nome, ama esse nome, e isso sempre me despertou muita curiosidade. Eu já tinha levantado alguns outros nomes. A curiosidade sobre essa história, que tem um pedacinho da minha em questões muito inversas, acabaram por me fazer escolhê-lo. Amo toda a história em volta dele.
Sobre o meu nome artístico, houve coincidências muito legais. O meu nome morto mais o meu sobrenome, que eu carrego até hoje, formam o meu nome artístico, que é o ‘Ja’, a primeira sílaba, e o ‘loo’ do ‘Melo’, que é o meu sobrenome. A história se mantém, é o começo do ‘Jade’ e o ‘loo’ do ‘Melo’. Foi um nome que eu inventei e, por conta disso, por não ter nenhum outro uso externo para além de mim, nunca teve gênero, ou sempre teve todos os gêneros”.
A diferença entre nome social e retificação de documentos
Dois conceitos se aproximam, mas são diferentes na trajetória de mudança de nome de uma pessoa trans. O nome social é aquele que ela escolhe acrescentar em seus documentos e nos lugares que frequenta, como escolas e serviços de saúde. É como se fosse um asterisco na identidade, que informa o nome pelo qual a pessoa prefere ser tratada, contudo não modifica o registro do seu gênero e ainda mantém o nome original nos documentos.
“Uma vez incluído, ele vem junto com o nome de registro. Fica assim no documento: nome social X e de registro Y. Ele não pode ser incluído em todos os documentos oficiais. No passaporte, por exemplo, isso não é possível. Por sua vez, na retificação de nome e/ou gênero, temos uma mudança e apagamento completos das informações de origem. O nome dado na origem é excluído e não fica nenhuma informação de que foi alterado. Existe, então, uma passabilidade documental de não precisar justificar o tempo inteiro que é uma pessoa trans”, detalha a CEO do serviço jurídico para pessoas LGBTQIAPN+ Bicha da Justiça, a advogada Bruna Andrade.
Para incluir o nome social, a pessoa deve solicitar o acréscimo ao emissor de cada documento — nas Unidades de Atendimento Integrado (UAI) para o RG e na Receita Federal para o CPF, por exemplo. Já a retificação é feita no cartório onde a pessoa foi registrada e custa, em média, R$ 1.800. Em 2024, o número de pessoas que retificaram o gênero nos documentos no Brasil aumentou quase 24% em comparação ao ano anterior e bateu o recorde de 4.862 mudanças, segundo o Sindicato dos Oficiais de Registro Civil de Minas Gerais (Recivil).
Seja o nome oficializado ou não, deve-se respeito a como uma pessoa trans deseja ser chamada. O tratamento com o nome ou pronome errados pode ser considerado crime de transfobia, cuja pena varia de um a dois anos de prisão e multa.
Não se engane: a pessoa desrespeitada provavelmente sabe diferenciar um erro sem intenção e uma ofensa deliberada, atesta o jornalista Zaíra Magalhães, uma das pessoas que conta sua história nesta reportagem. “Neste nosso período de polarização política que levamos igual ao futebol, com dificuldade de encontrar diálogos entre concepções diferentes e políticas, tenho percebido que algumas pessoas erram o pronome não somente por dificuldade ou desconhecimento. Elas fazem isso de propósito, para demarcar a posição de que elas não concordam com a transgeneridade do outro, de ‘olha, estou chamando você de de ela porque não concordo que você seja uma pessoa trans e não vou respeitar'”.
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