Acabo de ler o excelente “O Pobre de Direita”, novo livro do sociólogo Jessé Souza, foi escrito antes das eleições municipais, mas é uma leitura útil para entender um fenômeno que se verificou nas urnas: a virada à direita do eleitor brasileiro, que se situa majoritariamente nas classes C, D e E da pirâmide social.
Jessé Souza começou a pesquisar o assunto porque as duas explicações que existiam não o satisfazem”. “A primeira é a do minion, do gado, que é o estereótipo do senso comum. A segunda resposta, mais acadêmica, é a de que o pobre tem uma cabeça conservadora por causa da religião, como se fosse uma coisa intrínseca a ele. A pergunta que ninguém fez é: por que a pessoa escolhe justamente aquela religião entre tantas possíveis?”
A hipótese de Souza, ancorada em dezenas de entrevistas que ocupam metade do livro, é que existe entre os brasileiros das classes populares uma necessidade de reconhecimento e autoestima. “Trata-se de alguém que é humilhado cotidianamente, tanto que a depressão e o alcoolismo são doenças recorrentes entre as classes populares. A religião evangélica traz isso para o pobre, ele deixa de ser humilhado e passa a ser ouvido.”
Para Souza, esse é um fator de escolha de candidatos pouco explorado pelos cientistas políticos. “Existe uma moralidade, uma ética social compartilhada, não necessariamente articulada e consciente —aliás, quase nunca é articulada e consciente— que comanda o pensamento das pessoas.”
A ideia de que “as pessoas têm como razão última de sua ação social a dimensão moral”, como Souza escreve no livro, é retirada da obra do pensador alemão Georg Friedrich Hegel, principal referência filosófica do estudo.
Em sua pesquisa, Souza foi a campo em busca de brasileiros que votaram no ex-presidente Jair Bolsonaro em 2022. As entrevistas excluíram os ricos e a classe média —contingente que, em suas estimativas, soma 20% da população.
“Não peguei ninguém da classe média —a não ser da classe média descendente, que é muito importante, esse pessoal todo vota no Bolsonaro— porque são muito poucos, não elegem ninguém. Quem ganha a eleição são os outros 80%. São esses que você precisa explicar.”
Para isso, Souza recorre a um recorte regional e racial, baseado num mergulho em dados do censo. “A situação do negro pobre é muito pior que a do branco pobre. É como se o branco pobre estivesse com água até o pescoço, e o negro estivesse com o rosto todo dentro da água. É aí que a igreja evangélica pega, puxa pelos cabelos e diz, ‘respira, irmão’”.O negro no Brasil sabe que tem uma polícia que vai persegui-lo, que ele pode ser morto a troco de nada à noite. É uma situação muito pior que a do branco pobre.
Grande parte desses eleitores votavam na esquerda no passado e agora vota na direita. O que mudou? “Quando existia a Teologia da Libertação, houve um encontro no PT entre a organização de massas trabalhadoras —de modo autônomo pela primeira vez no país—, mas ao mesmo tempo com uma linguagem que chegava ao pobre através da Igreja Católica.” A igreja mudou. Os sacerdotes também. A teologia da Libertação é hoje minoritária nas dioceses e paróquias pelo Brasil a fora. A concepção liberal da sociedade é parecida com a concepção marxista no sentido de que se preocupam principalmente com questões materiais. Não veem que a vida moral, a vida simbólica, pode ser o dado mais importante.
Para Souza, há outras formas de atingir esses eleitores sem recorrer à religiosidade. “Getúlio Vargas, por exemplo, tinha uma mensagem política de valorização da dignidade do povo e do respeito à família, Deus, Pátria e liberdade. O problema não é apenas que a esquerda atual não sabe fazer isso. Parece que as campanhas de esquerda não se preocupam com questões morais e de costumes, tão caras ao eleitor pobre de periferia. Negro ou branco.
O importante é perceber o que poucos percebem, a carência simbólica, ou seja, a necessidade moral de superar uma situação de humilhação que é intragável para qualquer ser humano.
Sigmund Froid, em vários dos seus ensaios, já dizia que o ser humano necessita muito de reconhecimento, talvez tanto como o alimento. E este desejo se manifesta no voto; o eleitor pobre quer se sentir valorizado, respeitado na sua dignidade humana e reconhecido como o senhor dos seus atos. Neste ponto o clientelismo e o populismo saem perdendo para opções pragmáticas e que possam mudar efetivamente a vida do eleitor pobre. Tudo isto entendemos e compreendemos durante a leitura desta pesquisa esclarecedora e atual.
Gustavo Mameluque. Jornalista. Colunista do Novo Jornal do Notícias, do site montesclaros.com e da Revista Tempo.
Compartilhe: