Enquanto os mineiros assistem atônitos à disputa entre facções de Rio e São Paulo por territórios no Estado, o governo de Minas Gerais reduziu em 53% o investimento em “informação e inteligência” policial no ano de 2023, segundo dados do Anuário de Segurança Pública 2024. O valor, que em 2022 era de R$ 47 milhões, passou para R$ 21,9 milhões no ano passado, R$ 25 milhões a menos. A Secretaria de Estado de Justiça e Segurança Pública (Sejusp) alegou que, na verdade, houve uma “alocação de recursos em outra variável”, porém, questionada novamente para dar mais detalhes sobre qual o destino dos milhões, após mais de três semanas a pasta não se posicionou.
David Marques, coordenador de projetos do Fórum Brasileiro de Segurança Pública, que é a entidade responsável pela produção do Anuário, pontua que, de fato, sempre que se fala no desafio do enfrentamento ao crime organizado no Brasil, a solução passa, necessariamente, pela qualificação da investigação criminal, qualificação da inteligência policial e, também, pela articulação das forças de segurança com a Justiça Criminal.
“Se a gente pensar na descapitalização dessas organizações, que é uma das estratégias mais eficazes para combatê-las, a gente vai ter que falar da articulação da segurança e da Justiça com os órgãos de inteligência financeira, como o Conselho de Controle de Atividades Financeiras (Coaf), e, também, com as instituições financeiras privadas. Também é preciso que haja cooperação internacional, já que muitas dessas organizações atuam de forma transnacional”, pontua.
Presidente do Sindicato dos Servidores da Polícia Civil no Estado de Minas Gerais (Sindpol), Wemerson Oliveira, pondera que, apesar da Polícia Militar (PM) também ter seus próprios setores de inteligência, é na Polícia Civil a maior parte do investimento neste setor no Estado.
“Inteligência é diferente da investigação. Ela (inteligência) serve para tomadas de decisões durante a apuração de crimes. Para isso, a inteligência precisa estar infiltrada nas organizações criminosas, é um trabalho silencioso e que demanda um tempo para, quando preciso, passar informações cruciais para as investigações criminais”, explica.
Porém, conforme o presidente do sindicato, Minas tem hoje gargalos que são primários, como a ausência de viaturas descaracterizadas — essenciais em trabalhos “secretos”. “Os policiais precisam ficar pedindo depósito judicial de veículos apreendidos do crime. E aí vemos acontecer igual ocorreu em 2022, quando uma batida simples de trânsito tirou a vida de um policial que foi atingido por uma peça do airbag de um carro que era de bandido, que não passou por nenhuma vistoria antes de ser utilizado na rua”, completa Oliveira, lembrando da morte do investigador Alexandrino Guilherme Ferreira Júnior, de 40 anos, atingido por fragmentos metálicos após um engavetamento no viaduto Leste.
“O Estado só quer mostrar números. Então, para ele, não faz diferença se prende um grande líder de uma organização criminosa ou se prende um olheiro na boca de fumo”, considera o presidente do Sindpol.
Policiais reclamam da falta de estrutura
Policiais civis ouvidos pela reportagem sob anonimato reclamam principalmente da falta de estrutura para que eles possam fazer, ao menos, o básico do trabalho de investigação.
“O Estado acaba investindo em viaturas caracterizadas, armas e outras ‘perfumarias’, que repercutem bem nas necessidades políticas do governo e sua base. Sem investimento em investigação e sem uma perspectiva de ataque financeiro às organizações criminosas, pouco resultado virá”, pontua um investigador em atuação na região metropolitana de Belo Horizonte.
Ainda segundo o policial, nos últimos anos, nota-se uma maior preocupação com a “publicidade” das ações do que com os resultados das investigações em si. “Chefe manda investigador fazer ronda para ser visto na rua, nunca tinha visto isso na vida. Aumentou muito a divulgação no Instagram da polícia, orientam para a gente filmar tudo. Mas, se você vir e ver a estrutura da Delegacia de Repressão às Ações Criminosas Organizadas (Draco), você verá que não há o básico para fazer esse combate”, completa o policial.
De acordo com outro policial civil ouvido por O TEMPO, para além da falta de estrutura, há escassez de salários decentes e equipamentos modernos para que se fale em um trabalho eficiente de inteligência no Estado. Atualmente, a média do salário de um investigador em Minas está em R$ 6 mil. Apesar de ser um dos maiores unidades da federação, levantamento feito pela Confederação Brasileira de Trabalhadores Policiais Civis (Cobrapol) apontou que Minas aparece em 22º lugar no ranking de maiores salários entre a categoria.
“A gente está desmotivado e, o que vemos, é anúncio de não sei quantas viaturas, mas segurança pública não se faz só com carro. Viatura não apura crime! Vem na minha delegacia para você ver, uma cidade com mais de 100 mil habitantes e três investigadores. Tudo caindo aos pedaços, não tem estrutura, não tem computadores decentes”, reclama.
Wemerson Oliveira, presidente do Sindpol, reforça a falta de investimentos em tecnologias na Polícia Civil. “Temos uma delegacia anti-sequestro que mal tem pessoal, mal tem equipamentos. É vergonhoso! Os computadores que vão para as delegacias, em sua maioria são de doação do Tribunal de Justiça, do Ministério. Quando não serve mais para eles, doam para nossos policiais. Então, não tem investimento e a gente trabalha com o que tem”, diz.
“Diversos estados têm, hoje, equipamentos de identificação biométrica e, até mesmo, facial. Em Minas Gerais não temos nem a biométrica. Se alguém arromba uma sala e rouba algo, a perícia vai até o local e, digamos, consegue uma impressão digital do suspeito, a gente imagina que será solucionado. Mas, em 2024, não temos um sistema tecnológico para colocar essa impressão e comparar”, completa Oliveira.
Sejusp nega corte, mas não explica para onde foi o dinheiro
Procurada pela reportagem de O TEMPO desde meados de julho deste ano, a Sejusp negou, por nota, que tenha ocorrido um “corte” no investimento, argumentando que o que aconteceu foi uma “alocação” em outro setor. Para isso, a pasta citou que, no Plano Plurianual de Ação Governamental (PPAG) de 2023, o valor que teria sido “cortado” foi colocado pela Polícia Civil dentro de “outra ação genérica”, passando a integrar a Ação 4025, que corresponde à “gestão das unidades policiais”.
Porém, entre 2022 e o ano passado, o PPAG indicou que houve um aumento de R$ 480,5 milhões somente nessa ação de custeio das delegacias e demais unidades da Polícia Civil. Por isso, O TEMPO indagou a Sejusp sobre o porquê de ter sido necessário retirar estes R$ 25 milhões do investimento em inteligência para ser realocado na Ação 4025, bem como qual foi o destino de quase meio bilhão de reais de um ano para o outro. Entretanto, após quase um mês, os questionamentos acabaram ignorados pela secretaria.
“O governo de Minas reforça que a área de Inteligência da Segurança Pública está cada vez mais integrada e fortalecida no Estado. Destacamos como exemplo, a criação da Agência Central de Inteligência, no ano passado, que desempenha diversas ações importantes como o mapeamento de organizações criminosas, possibilitando uma melhor troca de informação e ampliação do cerco ao crime em Minas Gerais”, dizia a nota.
A pasta citou ainda que, em 2023, ano em que teria ocorrido a redução de R$ 25 milhões conforme os dados repassados pelo próprio Estado ao Anuário de Segurança Pública, foram feitos investimentos de mais de R$ 5 milhões em “equipamentos e sistemas de inteligência; ações de prevenção e repressão à violência escolar, além de mais de 20 operações integradas da área”.
Laboratório mira na descapitalização das facções
Ainda por nota, a Sejusp detalhou que a Polícia Civil expandiu a metodologia de trabalho do Laboratório de Tecnologia de Combate à Lavagem de Dinheiro, qualificando as investigações “com foco na descapItalização e confisco de ativos de organizações criminosas”. Antes, essas ações estavam concentradas na Superintendência de Informações e Inteligência Policial.
“Com a implementação do Laboratório, a Polícia Civil oferece o suporte necessário às unidades nas investigações qualificadas, além de poder dar uma resposta mais rápida e eficaz aos crimes de natureza financeira. A unidade conta com investigadores de polícia devidamente capacitados e visa intensificar a prevenção e o combate sistêmico à prática de lavagem de dinheiro, corrupção e improbidade administrativa na capital”, completa a pasta.
Por fim, a secretaria ressaltou que os relatórios do Laboratório subsidiam as apurações na delegacias, o que possibilita analisar o vínculo entre alvos investigados e valores, formando assim um “conjunto de provas” para “representar à Justiça por cautelares contra os alvos – busca e apreensão, bloqueio de bens, prisão, conforme o caso”.
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