No dia de seu aniversário de 14 anos, Lucas se surpreendeu com uma ligação do próprio pai. “Achei que ele ia esquecer”, reconhece, sem muita cerimônia, como se não fizesse muita questão de ser lembrado pelo genitor. O aparente desinteresse, contudo, é desmentido por um conjunto de sintomas que apareceram mais tarde, quando o adolescente teve uma crise de ansiedade, sentindo um mal-estar físico que incluiu desconforto abdominal, febre e insônia.
Não é a primeira vez que Lucas sofre com episódios semelhantes, que surgem após um contato inesperado do seu pai, com quem se encontra ou conversa em raras oportunidades – geralmente, apenas em datas muito específicas, como o Dia dos Pais, o Natal e as celebrações de aniversário. E, mesmo nessas ocasiões, os dois raramente passam um dia inteiro juntos.
O relato trata de uma experiência individual, mas, ao mesmo tempo, funciona como um retrato de uma situação muito comum no Brasil: a ausência do pai biológico na vida de seus filhos.
Para ter uma ideia, por dia, no país, cerca de 470 crianças são registradas sem o nome do genitor na certidão de nascimento. Em 2023, dos 2,5 milhões nascidos no Brasil, 172,2 mil deles têm pai ausente até nos registros oficiais – representando um aumento de 5% na comparação com o que foi registrado em 2022, conforme dados da Associação Nacional dos Registradores de Pessoas Naturais (Arpen-Brasil).
A estatística, embora impactante, representa apenas a face mais visível de um distúrbio social que é ainda mais amplo e de difícil medição. A exemplo da história de Lucas, muitas são as crianças e adolescentes que têm o nome do pai inscrito em seus documentos oficiais, mas, no dia a dia, para além das letras frias da burocracia, também lidam com sua ausência.
Queixas, sintomas e consequências
“Na rotina do consultório, essas queixas de crianças e adolescentes que possuem pai ausente surgem de diversas maneiras, seja no caso daqueles que não conheceram seus genitores, dos que têm pais divorciados ou mesmo no relato de filhos cujo pai está em casa, mas não exerce o papel, apesar da presença física”, expõe a psicóloga clínica Simone Alípio (@simonealipiopsicologa). “Agora mesmo, atendi um pré-adolescente que chorava falando que o pai mora em outra cidade e não é presente, mas que sente sua falta e até vergonha por ele não comparecer a eventos na sua escola, deixando de participar de sua vida”, conta.
Simone Alípio, especialista em saúde mental, salienta que a sensação de abandono tem efeitos diversos na vida das crianças. “No campo do humano, não há uma receita, de forma que é impossível cravar quais serão os impactos disso para todos os sujeitos”, explica, indicando, por exemplo, que alguns podem ficar mais retraídos, e outros, mais agressivos. “É recorrente, também, a ocorrência de sentimentos de rejeição e inadequação, que podem persistir ao longo da vida, afetando relacionamentos futuros e a saúde mental”, cita.
Um possível reflexo dessa ausência pode se dar no apego excessivo à mãe. “Neste caso, a criança teme voltar a viver uma situação de abandono, teme passar pela mesma frustração e perder essa figura presente, transferindo para ela toda a sua carência – o que é complicado”, examina.
O que fazer
Idealmente, Simone Alípio destaca ser importante que os pais, separados ou não, nutram uma boa relação e entendam que a parentalidade é um dever de ambos. Não por outro motivo, o abandono afetivo do genitor representa um descumprimento dos deveres do poder familiar previstos na legislação brasileira, citados no artigo 229 da Constituição Brasileira e no artigo 19 do Estatuto da Criança e do Adolescente (ECA).
Mas, se não há comprometimento do pai e a família lida com a sua ausência, a sugestão da psicóloga e psicopedagoga Roneida Gontijo Couto, em entrevista a O TEMPO, é que todas as perguntas e inquietações dos filhos sejam respondidas. “E é importante que as respostas sejam adequadas à idade e ao nível de maturidade da criança”, recomenda. “Também é fundamental que possíveis frustrações da mãe em relação ao parceiro ou ex-parceiro não sejam transmitidas à prole”, diz.
Papéis parentais são dinâmicos
O psicanalista e doutorando em psicologia Hugo Bento, por sua vez, lembra que as funções de pai não estão condicionadas exclusivamente à figura do genitor. “Do ponto de vista da psicanálise, a paternidade e a maternidade são funções que podem ser desenvolvidas por outras pessoas que tenham vínculo com a criança – e é importante que haja o vínculo, porque essa função não pode ser desempenhada sem que a própria criança reconheça a autoridade parental”, descreve.
“Eu acredito que, sim, do ponto de vista subjetivo, precisamos de um ser humano que se encarregue dos cuidados e da subsistência – que na psicanálise estão imbuídos na função materna – e de um ser humano que se encarregue da transmissão de valores culturais e de marcadores sociais – ligados ao paterno”, pontua Hugo Bento em conversa com a reportagem. “Mas, se essas funções serão exercidas por uma só pessoa ou por mais de uma, se serão desempenhadas pelo genitor, pela genitora ou por outra pessoa, pouco importa”, pondera, indicando que os pais, mesmo vivendo e convivendo com seus filhos, podem se abster da paternidade. “Pode acontecer, por exemplo, de essa função, que transmite ordem e concede à criança parâmetros para a construção da identidade, ser desenvolvida pelo avô, pela avó ou até por um amigo da família”, comenta.
Buscando ajuda
Por fim, Simone Alípio reforça que, se existe uma sensação de ausência do pai e isso repercute em sintomas na criança ou adolescente, é preciso buscar ajuda. “Preferencialmente, não apenas para a criança, como também seus pais precisam ser acompanhados por um profissional da psicologia, pois a mãe precisa compreender que ela não pode e não deve substituir o pai. E o pai, evidentemente, tem que entender que ele precisa se implicar e ser presente”, ressalta.
É o que vem acontecendo na família de Lucas, cujo relato abre esta reportagem. No caso dele, as crises de ansiedade o levaram a buscar ajuda, iniciando, com o suporte de sua mãe e de seus avós maternos, um processo de acompanhamento psicoterapêutico.
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