Patrícia ainda estava viva quando as ponderações sobre o fim do Sepultura começaram. Companheira de Andreas Kisser durante três décadas, ela morreu em 2022, aos 52 anos, vítima de um câncer de cólon. “Foram dois anos de conversas com todos da banda, com a minha família. Minha esposa sabia desse planejamento”, conta Andreas, que, desde 1987, ocupa o posto de guitarrista daquela que é considerada por muitos a maior representante de heavy metal do Brasil.
O fato de ser a banda brasileira mais aclamada no exterior é ainda mais unânime, e os números superlativos são um argumento pra lá de consistente: 50 milhões de álbuns vendidos ao redor do planeta, premiados com discos de ouro e platina, apresentações em mais de 80 países e resenhas consagradoras em revistas especializadas dos Estados Unidos e da Alemanha, com direito a terem sido o primeiro nome do segmento a levarem seu som pesado para Cuba e Rússia, preenchendo várias listas e paradas de sucesso mundial. Agora, eles vão alcançar quarenta nações em dezoito meses, em um adeus apoteótico.
Do berço ao mundo
Ao completar quarenta anos de estrada, os integrantes do grupo receberam “alguns sinais” de que era hora de parar. Um deles foi a recepção calorosa a “Quadra”, de 2020, décimo quinto título de estúdio da trupe, gravado na Suécia, que se consagrou como o mais bem sucedido desde “Against”, de 1998, com recepções positivas em dezessete países, ultrapassando a posição do histórico “Roots” (1996) na Alemanha e na Suíça. O crítico norte-americano Dom Lawson rasgou elogios ao trabalho. E não foi o único.
O portal Collector’s Room definiu “Quadra” como um dos 50 melhores álbuns brasileiros de metal de todos os tempos. “Estamos em um momento excelente, parar com consciência e em paz, com o sentimento de dever cumprido, é um privilégio que nem todo mundo tem”, confirma Andreas. A “sobrevivência à pandemia” também pesou nessa decisão de, no próximo dia 1º de março, iniciar a turnê de despedida do Sepultura, começando por Belo Horizonte, que Andreas enaltece como “berço de tudo”.
Vida e morte
Andreas morou cerca de três anos em BH. Ele considera “uma honra” dar o pontapé às comemorações na capital mineira, onde, em 1984, os irmãos Max e Iggor Cavalera fundaram a banda, mais precisamente no bairro Santa Tereza, região Leste da cidade. Andreas, no entanto, prefere curtir o presente, ao invés de mirar o retrovisor. “O momento mais marcante dessa trajetória é hoje”, garante. O batismo da empreitada vai nessa direção, “Celebrating Life Through Death”, que, em tradução literal, significa “celebrando a vida através da morte”.
“A morte é inevitável, vai acontecer para todo mundo, e, a partir do instante que a gente aceita a finitude, passa a viver o presente com mais intensidade, sem deixar os sonhos para amanhã”, afiança o músico, para quem a experiência íntima da perda da mulher amada trouxe dolorosos ensinamentos. “Refletindo sobre cuidados paliativos, suicídio assistido, ciência médica, compreendi que a morte fecha uma porta gigantesca, mas deixa aflorar possibilidades dormentes”.
Da fita-cassete à inteligência artificial
A despeito da “carreira espetacular” do Sepultura, o guitarrista tampouco se esconde dos “altos e baixos ao longo desse percurso”. Em 1996, o grupo sofreu um duro golpe com a saída de Max Cavalera, em meio a desentendimentos e acusações mútuas com os demais integrantes. Dez anos depois, foi a vez de Iggor anunciar sua saída. Desde 2013, Andreas (guitarra), Derrick Green (vocal), Eloy Casagrande (bateria) e o baixista Paulo Jr., único remanescente da formação original, defendem as hostes do Sepultura.
“Sobrevivemos a todas as mudanças tecnológicas, da fita-cassete à inteligência artificial, passando pela pandemia, e nos reinventamos, tivemos várias mortes e ciclos fechados, que abriram novas possibilidades”, sustenta Andreas. Ele dá como exemplo a perspectiva do cinema para justificar o encerramento das atividades do conjunto. “Se um filme não tem fim, ele não tem sentido. E assim é em tudo na vida. O inverno acaba para a primavera recomeçar. Mas as pessoas acham que tudo é pra sempre”, constata.
Indígena, tribal e metaleiro
Música tribal, indígena, africana e japonesa, encontros com Carlinhos Brown, Zé Ramalho, Lobão e João Gordo, indo do death ao thrash metal, gravando hits do Motörhead, dos Titãs e da Nação Zumbi, com direito a versão, inclusive, para a “Garota de Ipanema”. Não há como negar a marca da diversidade no DNA do Sepultura, cuja principal característica, a “pancadaria” sonora, manteve-se intacta. “O Sepultura sempre surpreende, trazendo algo novo, realizando parcerias inusitadas, agregando elementos à nossa música”, salienta Andreas.
Lançada em 2011, “Kairos”, parceria do entrevistado com Jean Dolabella e Derrick Green, determina essa atitude de “não criar expectativas para o futuro, nem ter arrependimentos sobre o passado”. “A gente segue em frente, se não tem ‘A’, vamos aproveitar as características de ‘B’. Seria patético querer ficar copiando uma pessoa, até porque, em quarenta anos, nós também mudamos muito”, sublinha Andreas. Inúmeros shows da turnê, com direito a “grandes clássicos, lados ‘B’, ‘C’, e uma jam percussion em ‘Kaiowas’”, já estão com ingressos esgotados.
Irmãos Cavalera
E, de acordo com o guitarrista, ainda há outros para serem anunciados. “Muita gente vai participar dessa festa”. Questionado se houve conversa com os irmãos Cavalera em relação à despedida, a resposta é ríspida. “Pra falar o quê?”. Mas, na sequência, Andreas admite que a presença dos dois “seria interessante”. “Ainda não paramos para olhar isso, eles têm a importância de terem fundado toda essa história, começou com eles esse pioneirismo. Estamos focados no início da turnê, vamos ver o que acontece”. Andreas acredita que “a liberdade” é a essência do heavy metal, com o conhecimento de quem se deparou com “diferentes religiões, culturas e posições políticas” no transcorrer das últimas décadas.
“Sem dúvidas, é o estilo mais popular do mundo. Não depende de hit, de ser o ‘number one’ nas rádios, os shows estão sempre lotados, independentemente do tamanho da banda, a galera apoia os festivais”. Ele também faz questão de rechaçar o estigma em torno do gênero. “Os fãs são educados, tranquilos, não tem estupidez, briga”. Seja em apresentações matutinas no Circuito Sesc ou varando a madrugada em porões do leste europeu, dá de tudo nos shows do Sepultura, “de crianças de colo a vovós com camisa do Motörhead”. “Passa de geração a geração. Não tem preconceito, homofobia, todo mundo se une dentro das diferenças”, arremata.
Serviço
O quê. Início da turnê “Celebrating Life Through Death”, despedida do Sepultura
Quando. Nesta sexta (1), às 21h
Onde. Arena Hall (av. Nossa Senhora do Carmo, 230, Savassi), em Belo Horizonte
Quanto. Ingressos esgotados
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