Quinta-feira, 5 de outubro de 2017, 9h52, o telefone da Central de Regulação Médica do SAMU Macro Norte tocou em uma sala do Complexo Regulador do SAMU Macro Norte que está localizado em Montes Claros. “Ele disse que era policial militar e que tinha uma creche pegando fogo. Ele não sabia ao certo o número de crianças feridas”, foi a informação inicial repassada à Técnica Auxiliar em Regulação Médica (Tarm), Jenilce Silva.
Após questionamento das informações de praxe, a ligação foi passada ao Médico Regulador, Francisco Honorato Lino (in memorian), que despachou rapidamente a unidade do SAMU de Janaúba para o local da ocorrência para prestar socorro às vítimas. É importante destacar que Francisco, que viria a falecer de Covid-19, em 2020, teve destaque na atuação ao atentado da creche e realizou uma das primeiras transferências das crianças por helicóptero.
A coordenadora médica, Lílian Fernandes, a princípio, não tinha dimensão do ocorrido até receber uma ligação do Hospital Regional de Janaúba e entender que poderia ser uma verdadeira tragédia. “Imediatamente, acionei o protocolo de múltiplas vítimas enviando as unidades de Suporte Avançado e Básico das proximidades, inclusive, as de Montes Claros”, conta Lílian. Para quem não sabe, Montes Claros e Janaúba estão distantes cerca de 135 km.
“Estávamos no Núcleo de Educação Permanente (departamento do SAMU) realizando um treinamento. Sempre quando há eventos de grandes proporções somos acionados para dar apoio. A maior parte da equipe deslocou-se imediatamente para Janaúba e uma outra parte permaneceu em Montes Claros para ajudar na retaguarda e organizar os insumos”, disse Ubiratam Correia, que é enfermeiro e coordenador do NEP.
O médico Antônio Cedrim havia acabado de chegar de um plantão hospitalar noturno e planejava passar um tempo com os filhos e praticar sua atividade física, a escalada. Mas, antes de qualquer coisa, recebeu uma ligação do Complexo Regulador perguntando se teria disponibilidade para participar do atendimento de uma ocorrência: uma creche que havia se incendiado. “Entrei na ambulância, e, só naquele momento, fiquei sabendo que a ocorrência era na cidade de Janaúba. Abri um pacote de amendoim japonês e uma garrafa de água mineral de 1,5 litro e falei com todos: vamos comendo, pois não sabemos que horas iremos nos alimentar novamente”, se lembra.
No local
A primeira equipe do SAMU a chegar ao local foi a Unidade de Suporte Básico de Janaúba. No dia, a técnica em enfermagem Karine Brito e o condutor socorrista Herberte Fernandes tripulavam a ambulância. “A cena foi triste! Você chegar e ver aquelas crianças mortas caídas ao chão, todas carbonizadas, e ter que ‘pular elas’ pra poder procurar outras para salvar”, descreveu Herberte sobre o cenário que encontrou ao chegar na escola.
Quando as equipes do SAMU de Montes Claros chegaram, uma grande parte se dirigiu ao hospital de Janaúba, onde o maior número de vítimas se encontrava. “Encontramos um cenário ainda em organização, havia algumas estruturas montadas, como, por exemplo, um Posto de Comando de Operações. Havia muitos profissionais, porém sem organização e ordenação para o atendimento”, disse Cedrim.
Enquanto isso, Lílian Fernandes comandava a Regulação Médica, já que o então coordenador médico havia se deslocado para a ocorrência para dar apoio. “Me vi diante de uma grande responsabilidade. Me concentrei e coloquei o foco na organização e execução das ações. Teve um momento que abaixei minha cabeça na Regulação e pensei ‘Meu Deus, será que fui precipitada? O que será que está acontecendo?’ Com o decorrer do tempo, confirmei que a minha conduta estava certa. Eu não tenho dúvida de que fui guiada por Deus, agi com o sexto sentido. Tomei condutas baseadas em minha experiência, conhecimento médico e na intuição.”
“Me incumbi da missão de retirar e classificar cada vítima, organizando assim o atendimento inicial e a triagem por prioridade de transporte, transferência e evacuação das vítimas para hospitais de referência para receberem tratamento definitivo”, explicou Cedrim. “Em conjunto com os colegas, conseguimos coordenar a logística de equipes para o transporte aéreo e de unidades de solo recebendo os pacientes transportando até os hospitais e potencializando os recursos disponíveis como as aeronaves”, acrescentou Lílian.
Marcas
Ao perguntar sobre o que foi marcante para eles, a resposta foi unânime: o empenho de todos os profissionais em fazer o melhor para todas as crianças. “A energia naquele local era diferente! Todos unidos com um único objetivo”, afirmou o médico Cedrim.
“Também me marcou foi a gravidade de uma das crianças que transferimos. Ela teve diversas paradas cardíacas entre Janaúba e Montes Claros”, disse Ubiratam que revelou ser necessário fazer uma cirurgia ainda dentro da ambulância. “Naquele momento, foi que percebi que a insensatez e maldade humana é capaz, porém, com esforço somos capazes de reverter essas mazelas”.
Já para Cedrim, uma garota que teve 100% de sua superfície corporal queimada e foi atendida por ele ficou na lembrança. A mesma, não resistiu e foi a óbito, depois. “O que mais me marcou é saber que são crianças! E quando entrou a informação do primeiro óbito, acho que destruiu um pouquinho de cada pessoa que estava na Regulação”, disse a Tarm, Jenilce. “O que nos deixou marcados foi a forma, a crueldade feita com as crianças que não tinham nada a ver e pagaram com suas vidas!”, acrescentou o condutor socorrista Herberte. “Particularmente, tenho como um dia para não ser lembrado, pois foi um dia muito triste pra todos nós, principalmente, para mim por ter um filho que, na época, tinha a mesma idade daquelas crianças”, concluiu Herberte.
Solidariedade e reconhecimento
O SAMU Macro Norte empenhou cerca de 50 profissionais da instituição, entre médicos, enfermeiros, técnicos em enfermagem, condutores socorristas e funcionários do setor administrativo. A instituição prestou atendimento à ocorrência por cerca de 36 horas, após a solicitação inicial de atendimento. Alguns profissionais que estavam de folga não relutaram em contribuir com seu esforço para dar uma chance a mais àquelas crianças. Se envolveram, tanto no atendimento às vítimas in loco como nas inúmeras transferências, via terra ou aérea, para os hospitais de Montes Claros e Belo Horizonte.
Pouco tempo depois da tragédia, a Defesa Civil do Estado de Minas Gerais condecorou alguns profissionais que representaram as equipes na ocorrência. “Esta medalha está guardada e pertence a todos os profissionais que atuaram naquele dia. Se pudesse parti-la em pedaços iguais, daria um pedacinho a cada um dos profissionais que lá estiveram”, afirmou Cedrim.
O médico Antônio Cedrim lembrou que sentiu um sentimento de dever cumprido ao voltar para o ambiente familiar: “Ao chegar em minha casa, no sábado pela manhã, e poder abraçar meus pequenos, que estavam seguros e com saúde”. “Diante de tanta dor e tristeza pude ver a esperança de um mundo melhor. Senti uma sociedade solidária! A empatia estava em evidência! Profissionais do SAMU deixaram seu descanso e se prontificaram a assumir as ambulâncias. A quantidade de pessoas que se disponibilizaram a ajudar de todas as formas. Inesquecível esse triste plantão do dia 5 de outubro de 2017”, concluiu a médica Lílian Fernandes.
Para quem não se lembra, o atentado que chocou o Brasil aconteceu na Creche Gente Inocente, no município de Janaúba, no Norte de Minas. Um funcionário da creche, que atuava como vigia noturno, ateou fogo no imóvel do educandário atingindo crianças, professores e demais funcionários que se encontravam alí. O atentado à Creche Gente Inocente causou a morte de dez crianças, três professoras e a do próprio vigia. A data marcou a vida de muitas pessoas. O que restou foram lembranças, marcadas como tatuagem, nos familiares das vítimas, nos profissionais que atenderam à ocorrência e para aqueles que se emocionaram apenas acompanhando a notícia pelos veículos de comunicação.
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