Dona Maria das Dores Reis nasceu em Joaquim Felício, mas viveu até os 15 anos na zona rural de Jequitaí. De lá, resolveu tentar a vida na cidade grande e se mudou para Belo Horizonte. A saudade da vida pacata e mais tranquila trouxe-a de volta, 20 anos depois, para o Norte de Minas, só que, desta feita, para Montes Claros.
Assim como várias Marias espalhadas pelo Brasil, essa norte-mineira carrega a “estranha mania de ter fé na vida”, expressão que consta na canção tão bem interpretada pelo cantor brasileiro Milton Nascimento. A melodia, por trás das estrofes, poderia facilmente ser a trilha sonora da mulher que marcou história ao ser a primeira pessoa a ser vacinada contra o coronavírus em Montes Claros. Ela, assim como milhares de brasileiros, tem tido muita força e raça para passar pelo momento tão desafiador da pandemia, que ceifou vidas e esconde sorrisos por trás das máscaras.
Retrato “de uma gente que ri quando deve chorar”, a aposentada conseguiu lidar muito bem com duas fortes emoções nos últimos cinco meses. Morando há quase dois anos no Asilo São Vicente de Paula, Maria das Dores Reis sempre passava o fim de semana na casa da filha de 15 em 15 dias. Com as regras de isolamento social decorrentes da pandemia, esse costume foi interrompido. Ao saber que seria a primeira pessoa a ser imunizada contra a covid-19 na cidade, a esperança de dias melhores se renovou.
“Fiquei alegre demais! Fiquei ansiosa para chegar logo. Quando recebi a vacina, me enchi de esperança. Muito bom saber que vou ficar protegida desse mal. Porque a gente fica com saudade de ir passear na casa da gente, da família, dos vizinhos”, comenta.
O enfermeiro Marco Túlio Miranda Araújo, que atua no asilo há oito anos, foi o responsável por escolher dona Maria para se vacinar. Ele conta que 30% dos 121 idosos que moram no local recebiam visitas frequentes dos familiares e amigos, e que, com a pandemia, esse contato não foi mais possível, situação que levou alguns idosos a um quadro depressivo.
“A gente sabe que ainda falta muito para abrir os portões para o público. No entanto, só o fato de ter começado a vacina aqui, já sentimos que melhorou o emocional dos idosos. Eles estão mais esperançosos. Dona Maria, por exemplo, vivia reclamando que estava com saudade da casinha dela, da família. Isso impactou muito neles, porque aqui era muito movimentado, com os estagiários de saúde e muita gente vinha visitar. Como foi vedada a vinda de todos, nós criamos atividades internas para tentar animar, como sessões de cinema e brincadeiras. Só que não há nada como o calor humano. Agora eles sabem que logo vão poder abraçar quem eles gostam novamente”, comemora o enfermeiro.
Para a neta de dona Maria, Maristaine Emanuelle Pedro Monteiro, de 35 anos, o motivo de a avó ter sido a primeira a tomar a vacina na cidade tem uma explicação: “Ela nunca parou de crer. Sempre firme nas orações, participava de trabalhos comunitários. Também frequentou os grupos de oração, como Legião de Maria, Sagrado Coração de Jesus, catequese e encontro da família. Organizava novenas, terços nas casas, enfim. Ela é muito alegre, gosta de conversar, de ser ouvida, porém, acima de tudo, ela é uma mulher de muita fé. É muito querida na comunidade da Igreja Nossa Senhora Aparecida. Esse momento para mim só comprova a força de sua fé e oração. Ela foi escolhida por Deus”.
Mari, como é conhecida, conta que mora com a avó Maria desde quando nasceu e, por isso, elas possuem uma relação de mãe e filha. Com tantos anos de convivência, a neta aprendeu a chamar dona Maria de mãe. Ela explica os motivos que a levaram a colocar a pessoa mais importante da vida dela em um asilo:
“Ela teve um AVC, e só morávamos nós duas na casa. Não tinha outra pessoa que pudesse ajudar, pois os outros familiares também trabalhavam. Fiquei três meses sem trabalhar, cuidando dela, e a opção que eu tive foi essa. Sofri. Todas as pessoas me julgaram, e fui bastante massacrada. No entanto, na minha cabeça, estava ciente de que era a coisa certa a se fazer. Pedia a Deus discernimento. Primeiro, nós duas conversamos que era só por um tempo até as coisas se ajeitarem. Ela entendeu, porém não deixa de querer vir morar na casa dela, né?”.
Apesar de ter tido receio de se separar da família, dona Maria encontrou no Asilo São Vicente de Paula uma segunda casa. “Quando eu tive AVC, Mari ficou cuidando de mim por três meses. Eu entendi que ela tinha que trabalhar. Foi difícil. Pensei que não ia me acostumar no asilo, só que desde o primeiro dia que vim, comecei a gostar. Eles nos tratam muito bem, graças a Deus. Convivo com pessoas maravilhosas. Encontrei minha segunda família”, revela.
Com a doença, algumas memórias da aposentada Maria se perderam no tempo. No entanto, a maneira como batalhou para conquistar a casa própria ela não se esquece. “Fui para Belo Horizonte trabalhar como babá quando eu tinha uns 15 anos. Por lá mesmo casei, e la morei por 20 anos. Depois vim pra Montes Claros. Aqui vendia pipoca, doce e bala; foi com isso que comprei minha casinha para morar”, relembra.
A neta confirma as lutas da avó: “Sempre foi muito esforçada para não faltar nada em casa; trabalhou anos na Praça da Matriz. Eu, com uns 4 anos, ia com ela e seu carrinho verde de pipoca, todo escrito de laranja. Lembro como hoje: ela sempre forrava uma lona debaixo do carrinho para eu dormir, e eu amava. Aquilo ali era divertido, fora a praça que era impecável de linda, e assim íamos vivendo o dia a dia. Éramos muito felizes”.
Para não deixar a felicidade morrer, familiares e amigos de dona Maria prepararam um aniversário surpresa, mesmo durante a pandemia. Ao completar 89 anos de idade, há quatro meses, uma carreata formada por familiares, amigos e vizinhos surpreendeu a idosa. O aniversário foi comemorado de um jeito bem diferente.
“Em todo aniversário dela, a gente faz um bolinho. No ano anterior, fizemos a comemoração. Em 2020 veio a covid-19. Pensamos: o que fazer para não deixar passar em branco? Vimos que todo mundo estava na onda de fazer chá-revelação com carreata. Observando isso, resolvi fazer a carreata para minha mãe. Programei, chamei os vizinhos e pessoas do convívio dela da igreja. Ela fez aniversário no dia 15 de setembro, e a comemoração foi no dia 18, em um sábado. Colocamos o som com músicas que ela gosta na porta do asilo. Levamos balões, lembranças, presentes, bolo, salgados. Fizemos uma homenagem. Ela amou, pois não esperava isso”, relata a neta.
“Senti a mesma coisa que senti no dia da vacina; me senti especial. Fiquei no meio de duas famílias. Minha família de sangue e a família do asilo. Pena que não podemos abraçar, mas só de ver eles cantar parabéns, foi especial demais”, emociona-se dona Maria. Agora, conta nos dedos o dia de poder voltar a passear na casa que morou por tantos anos.
Compartilhe: