DECEMBER 9, 2022


Cultura correndo nas veias

O médico, o educador, o político, o empresário e o fazendeiro João Valle Maurício também gostava de ostentar no currículo outras duas atividades: a de escritor e a de seresteiro. Um verdadeiro agitador cultural daqueles tempos, esteve à frente da criação da Academia Montes-Clarense de Letras e foi responsável pela inauguração do tradicional Automóvel Clube

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DA REDAÇÃO

João Valle Maurício nasceu no dia 21 de abril de 1922, o mesmo ano em que ocorreu a Semana de Arte Moderna no Brasil. Momento em que se buscava a criação de uma identidade nacional, pois, até então, a arte brasileira seguia apenas as tendências estrangeiras. Ter nascido em uma data tão significativa para a cultura nacional é uma intrigante coincidência atrelada à biografia de Dr. Maurício, visto que ao longo da vida sempre foi um grande apreciador da arte, sobretudo a literária e a musical.

Liliane Maurício diz que, desde mais novo, o pai já desenvolvia a intimidade com as palavras, talento que o acompanhou por onde passava. O resultado do domínio com a escrita resultou em sete livros. São eles: Grotão (1962); Taipoca (1974); Rua do Vai Quem Quer – 1ª (1978); Pássaro na Tempestade (1982); Rua do Vai Quem Quer – 2ª edição (1992); Janela do Sobrado: Memórias. 1ª edição; Beco da Vaca (1999); e Janela do Sobrado: Memórias – 2ª edição (2007).

Se não bastasse despertar o gosto pelas letras dentro de casa e entre os amigos, Dr. Maurício quis expandir as discussões literárias por toda a cidade. Para isso, ele, junto a alguns escritores atuantes na época, fundou a Academia Montes-Clarense de Letras, em 1966, onde ocupou a cadeira número 8. O escritor Wanderlino Arruda relata como João Valle era exigente na aprovação de novos membros: “Foi um presidente muito rigoroso na escolha de novos sócios, exigia muita qualidade de quem pretendia chegar à academia.”

Dr. Maurício, junto a alguns escritores atuantes na época, fundou a Academia Montes-Clarense de Letras, em 1966, onde ocupou a cadeira número 8. Ele também fez parte da Academia Mineira de Letras e se inscreveu para fazer parte da Academia Brasileira de Letras, no lugar do conterrâneo Cyro dos Anjos (Crédito: Arquivo da Família)

Ele também ocupou a cadeira 14 da Academia Mineira de Letras, a segunda mais importante do país, e se inscreveu para ocupar a cadeira 24, na Academia Brasileira de Letras, no lugar do conterrâneo Cyro dos Anjos, em 1994. No entanto, não obteve votos suficientes pelos acadêmicos. “Ele aproveitava os intervalos das consultas médicas para escrever, sempre escrevia à mão. Outro fato interessante é que grande parte dos atendidos era da área rural, e como a maioria não tinha tanta leitura, ele adaptava a linguagem para que todos entendessem o diagnóstico”, revela Arruda.

Como orador, fez discursos emblemáticos.

“Tudo que tinha na cidade ele estava envolvido, se vinha um governador, quem recebia era ele. Ele fazia os discursos para receber o pessoal. Reuniões de academias, lançamentos de livros, tudo! Ele lia demais, então tinha um vocabulário perfeito. Todos se emocionavam”, pontua a filha Liliane. A maestria na oratória inspirou outros nomes da sociedade norte-mineira, como o do advogado Antônio Dias, ex-prefeito de Francisco Sá, ex-deputado estadual e ex-presidente da Assembleia Legislativa de Minas Gerais.

Antônio Dias relembra que desde quando chegou a Montes Claros, em 1970, Dr. Maurício o levava para participar dos encontros que aconteciam na cidade. O convívio permitiu um aprendizado constante. Apesar da facilidade que já tinha com o discurso, o advogado confessa que se inspirava no perfil do amigo: “Ele falava brincando: “Você está me copiando, hein, Dias”. Ou seja, falava copiar no sentido da oratória, do uso das palavras. Ele era o cara. Pequeno em estatura, mas muito grande de alma”.

O ex-auditor Fiscal da Receita Federal, Mario Ribeiro Filho (Ucho Ribeiro) também nutre profundo afeto ao lembrar-se do homem que ele carinhosamente chamava de tio. O pai dele, Mário Ribeiro, e Dr. Maurício, eram compadres e amigos. Ucho conta que dessa proximidade, surgiu a admiração pelo médico, cultivada até hoje. Ele destaca que um dos momentos mais marcantes que tem do Dr. Maurício foi o dia que ele começou a adoecer, um ano antes de morrer. “Ele teve quatro filhas, e me tinha como um filho. Lembro que ele passou lá em casa para me pegar e eu ir ao médico com ele. Fomos para o Prontocor, hospital que ele fundou. E disse:

“Quero que você vá comigo, fique do meu lado. Nesse dia, ele fez um exame muito difícil, ficou segurando minha mão. Uma coisa que me emocionou muito foi ele pedir a minha presença para ficar com ele, sendo examinado, de mãos dadas comigo. Ele gostava muito de mim e eu dele. Sentava, conversava horas e horas, hoje eu também sou um contador de casos no boteco muito por influência dele,” gargalha Ucho.

Ucho ainda recorda que com 25 anos começou a frequentar as mesas de conversa que seu pai e Dr. Maurício participavam no antigo bar chamado Quintal. O lugar era o point da turma que se reunia quase todas as noites depois do trabalho para discutir a política nacional e local, além de contar histórias e causos.  Ele lembra que na época não tinha celular e a televisão não era acessível. Por isso, encontros como esse eram mais comuns. Outro fato interessante recordado por Ucho,é a forma como os rivais políticos de Montes Claros sentavam na mesma mesa amigavelmente, como Jairo Ataíde e Tadeu Leite, Toninho Rebelo com Mário Ribeiro, e por aí vai.

Nesse meio, Dr. Maurício contribuía com as discussões e projetava julgamentos sobre os mais diversos assuntos. É o que conta Luiz Cláudio, o Cascão, outro admirador que participava das reuniões noturnas no bar, que era localizado na Avenida Coronel Prates, em frente a Igreja do Rosário. Inclusive, na contracapa de um dos livros de Dr. Maurício, intitulado por “Beco da Vaca”, Luíz faz um tributo ao autor no qual o apelidou de ‘Quintaleiro’. A explicação é de que o apelido tem a ver com a forma como o médico agia nas rodas de conversa. “Chamo-o de ‘Quintaleiro-Mor’, porque o elegi ao ápice da mesa. Era realmente um ser múltiplo, ímpar. Na mesa, sentava o pessoal da mesma faixa etária: ele, Dr. Mário Ribeiro, Konstantin Cristof, Roberto Teixeira Campos… Apesar de termos 40 anos de diferença na idade, eles aceitavam a gente”, relembra.

 O advogado Reinini Canela recorda ainda que Dr. Maurício participou ativamente da criação e consolidação de algumas entidades culturais e clubes da cidade, como o Automóvel Clube, fundado em 1964. “Herdei do meu pai, Cândido Canela, a amizade com o Maurício. Tive convivência com ele por mais de 30 anos no Automóvel Clube e no Lions Clube. Ele, inclusive, ajudou a fundá-los. Inicialmente, uma ideia política, pois a cidade só tinha um clube, que era o Clube Montes Claros, ligado ao partido PSD. Daí, criaram o Automóvel, que era da oposição, do PR, partido no qual Dr. Maurício fazia parte. Com os anos, a amizade prevaleceu e o Automóvel Clube, que seria um clube republicano, passou a ser aberto a todos”, rememora Canela.

Colunista social Theodomiro Paulino

Por falar no Clube Montes Claros, foi exatamente nele que ocorreu um episódio memorável entre o Dr. Maurício e o colunista social Theodomiro Paulino. “Antes de entrar no jornalismo, com meus 17 anos, em 1964, promovi, no antigo Clube de Montes Claros, uma festa chamada Showcite, em que personalidades de Montes Claros interpretavam personagens nas apresentações.  Eu, já muito amigo do Dr. Maurício e da família, convidei-o para participar da festa beneficente. Ele cantou muito bem a música que mais gostava: ‘A noite do meu bem’, interpretada por Dolores Duran. Afinadíssimo, ganhou muitos aplausos”, elogia. Anos depois, em dezembro de 1999, Theo homenageou Dr. Maurício com o Troféu Humanidades.

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